Biografia do autor

Nascido em 87, Nuno Dias Madureira é um idiota carismático. Com um leque variado de interesses, este jovem desenha impressionantes e meticulosos retratos, capazes de competir com as obras de uma criança de oito anos. Desde cedo se interessou pela escrita, plagiando com mestria vários trabalhos na escola. Actividade que viria a aperfeiçoar nos tempos de faculdade. Actualmente frequenta o mestrado Novos Media e Práticas Web na UNL, pelo que já recorre aos seus profundos conhecimentos de HTML e CSS sendo, nomeadamente, capaz de centrar uma imagem recorrendo ao código. No entanto, é no cinema que Nuno deposita as suas esperanças. Lynch, Godard, Jarmusch e Tarkovsky são algumas das referências do aspirante a realizador que nunca pegou numa câmara de filmar, e provavelmente nunca o fará

9.12.09

As coisas

Enlouquecera. As coisas falavam-lhe; ganharam voz, as coisas: Guitarra-fatal, Caneta-invejosa, Flor-poeta, Faca-delicada, Porta-janela, Cinzeiro-suicida. A sua casa tinha vida. Estava sozinho desde há muito – escondido entre pensamentos e palavras – entregue à literatura que lhe salvara a vida. De um dia para o outro tudo mudou: A sua casa estava viva.

Tudo começou numa manhã de Fevereiro, ao desligar o despertador (ou Despertador-boémio como se chama agora), o pequeno dispositivo responde:

- Outra vez às sete da manhã? Mas ninguém pode dormir nesta casa?

Incrédulo, o velho olhou fixamente o objecto que acabava de lhe dirigir a palavra. Esfregou os olhos julgando-se ainda embrenhado num qualquer sonho, vestiu umas calças e foi até ao café da esquina comprar pão fresco. Ainda estava quente, abriu a segunda gaveta ao lado do fogão e tirou a faca do pão (Faca-delicada como é conhecida hoje em dia). Ao cortar o pão pela metade, uma voz gentil suspira:

- Que delicia, tão quente que até fico arrepiada.

O velho larga a faca e permanece imóvel. Estou a imaginar coisas, pensou enquanto a mão tremia.

- Mas que é isto?! – Grita para a faca, como se perguntasse a si mesmo.

Nada. Novamente o silêncio punha em causa as nítidas palavras que acabara de ouvir. Pegou no pão e foi-se sentar na cadeira da sala.

- Entre o calor do verão e o frio do inverno, sê o vento.

Virou subitamente a cabeça para o vaso de onde vinha aquela frase, parando de mastigar para ouvir.

- De quantas palavras vou ainda precisar para compreender a sua inutilidade?

Levantou-se em sobressalto, agarrou o Vaso-poeta com as duas mãos e agitou-o violentamente.

- Fala! Não falas agora? FALA!

Nada. Foi à cozinha buscar o Copo-autoritário e colocou-o ao lado do vaso. Os objectos não lhe respondiam nem falavam entre si. Necessitava de clarificar as ideias e decidiu aventurar-se pela rua. Caminhava receoso, olhando em todas as direcções na expectativa que alguma pedra da calçada, banco ou maço de cigarros pisado no chão desse o ar de sua graça. Durante três horas vagueou pelas ruas e nenhuma criatura, pessoa ou objecto, lhe dirigiu a palavra.

Antes de colocar a chave na fechadura suspirou. Imaginara uma revolução na sua ausência: Facas e garfos batalhavam juntos contra o detergente que se aliara ao lava-loiças; cadeiras e sofás gritavam a uma só voz pela equidade e contra a hegemonia das almofadas; papeis e cadernos incendiavam estojos vitimando canetas e marcadores; livros fugiam da estante que os aprisionava, a impressora apaixonava-se perdidamente pela máquina de escrever avariada. Contudo ao entrar em casa reparou que tudo estava na mesma; nem um murmúrio se ouvia. Afundou-se no sofá; adormeceu.

Um mês passara. Não enlouquecera; as coisas falavam-lhe; ganharam voz, as coisas. Garfo-assassino, Espelho-adolescente, Gaveta-revolucionária, Tesoura-artista, Pincel-hipocondriaco, Gravata-surrealista, Cadeira-mimada, Prato-depressão, Pente-sedutor. A sua casa tinha vida.

Durante trinta e um dias aprendeu a lidar com as coisas, habituara-se à sua companhia – com os seus pensamentos e monólogos - apenas falavam quando queriam, nunca respondiam ou interagiam, eram espontâneos e egocêntricos durante trinta e um dias. Costumava dizer para si que eram todos como gatos mimados, só vinham ter com o dono quando queriam. No fundo era como se o velho não existisse. Nesse mês fez várias experiências e chegou a várias conclusões:

1) As coisas têm uma personalidade própria. Cada uma delas parece ter opiniões e preocupações diferentes. Começou a dar nomes aos objectos consoante as suas frases e perspectivas. (o seu favorito é o Pente-sedutor)

2) As coisas só falavam dentro de casa. Na experiencia numero sete levou o Livro-anoréxico, o Telemóvel-assassino e o Cachecol-arrogante consigo e uma vez mais nenhum deles falou fora de casa.

3) Alguns objectos nunca falaram, como a escova de dentes. Concluiu que alguns objectos já tinham morrido, permanecendo apenas a sua forma física.

NOTA: O cinzeiro-suicida é muito depressivo e por vezes ficava triste por ele.

As coisas só lhe respondiam quando as utilizava. Começara a beber sempre o café da manhã na chávena-arrogante, e quando se penteava o pente-sedutor costumava dizer uma ou outra frase do estilo “Que classe, agora é que elas me caiem aos pés” ou então algo moralista “Só vivemos uma vez, mais vale arriscar um não que ficar com um talvez”. Por vezes acendia o Candeeiro-cantor durante o dia só para o ouvir cantar; enfim, as coisas já falavam tanto consigo, ou com elas próprias, que quando queria estar sozinho tinha que sair de casa.

Um dia tudo mudou. Conheceu realmente as coisas, conheceu-se a si mesmo. Após uma ida ao oftalmologista, na qual ficou a saber que estava a ver pior e que precisava de uns óculos novos, não voltou mais a casa. Passaram-se dias, talvez até semanas, e não voltou mais a casa. Encontrava-se na escuridão completa e apenas ouvia umas palavras de pessoas que não reconhecia. Enlouquecera? As coisas já não lhe falavam. Quando voltou a ver a luz do dia reparou que estava no meio de outros objectos mortos, mortos e pútridos. Foi aí que compreendeu:

Ele era um objecto; também ele uma coisa. Era uns óculos antigos e estragados. Era: Relembrou. Guitarra-fatal, Caneta-invejosa, Flor-poeta, Faca-delicada, Porta-janela, Cinzeiro-suicida.

Talvez todas as coisas tivessem também uma consciência da sua existência; talvez elas dessem pela sua falta. Talvez fosse mesmo conhecido como o Óculos-Pessoa, o objecto que julgava ser um homem. Não voltou a pensar.









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Texto ainda por rever e com final provisório. Não fiquei muito satisfeito e vou tentar ainda reescrevê-lo; mas como não deve variar muito do que aqui está, cá fica. (Queria que o título fosse "O velho e as coisas" mas seria rip-off de o "Velho e o mar" do Hemingway por isso ficou apenas "As coisas")

1 comment:

Lin said...

OMFG, mais mais mais.
Lia-te durante horas.
Escreves com tal intensidade, como já não lia há alguns anos.
<3

queres ser meu amigo ? :D
brincadeirinha.